09
de fevereiro de 2011, lentamente a lua volta a crescer no céu de cada
um de nós. Assim, mais ou menos de forma direcionada, mantemos nossos
movimentos cotidianos externos. Cada um de nós, repletos de memórias
densas, importantes e fecundas, lida como pode, no fundo da alma, na
noite profunda de nosso interior com a riqueza doída e luminosa de
estarmos vivendo ‘estes dias’ de nossas vidas, nestas serras queridas.
Nos
últimos dias, algumas pessoas e a mídia em geral têm usado, em nome do
desejo de criar uma onda positiva, otimista, uma frase que me dói:
“Estamos finalmente voltando ao normal”.
Como
assim, voltando ao normal? Se o normal é como era antes, não posso
aceitar que voltemos a ele. O normal de antes, era feito de muitos
interesses separados; seja por grupos sociais e econômicos; seja por
grupos de famílias; seja por religiões ou entre pessoas ‘do bem e do
mal’.
O
normal de antes era civilmente muito solitário, era feito de conselhos
municipais esvaziados, envelhecidos antes de florescerem; era feito de
instituições sociais importantes e maduras, atuando ingenuamente em
nossa sociedade.
O
normal de antes tinha muito pouco tempo para solidariedade, para servir
ao outro acima de tudo. E que fique claro, quando falo servir ao outro,
não estou dizendo servir ao outro que precisa, que é pobre. Estou
falando em construir uma sociedade de tal forma, que não se produza o
acúmulo de bens por uns poucos.
O
normal de antes não tinha tempo para longas, gostosas, profundas e
preguiçosas conversas ao redor da mesa de refeições ou na calçada de
casa.
Sem
dúvida, o normal de antes também tinha práticas de grande valor humano e
potencial transformador. MAS...pouco, muito pouco, diante do tamanho da
tarefa.
Nestes dias vivemos fora do normal. Ah, com certeza vivemos. Nestes
dias que passamos sem eletricidade, pude reaprender sobre o silêncio de
nenhum motor funcionando, de nenhuma rede virtual ativa, de nenhum
aparelho áudio visual emitindo estímulos; pude sentar com minha família,
amigos e desconhecidos, na penumbra da luz de raras velas, e suspirar
sob o sentimento humilde do tamanho dos meus braços, de minha força real
de transformação e de ser ajuda. A eletricidade amplia nossa força de
atuação e também nos ilude sobre nosso tamanho.
Nestes
muitos dias que passamos sem água encanada e potável, pude reaprender
sobre tudo que se lava com dois litros d´água(medida das muitas garrafas
pet que me chegaram). Pude conviver com os meus dejetos(urina e fezes) e
os de minha grande família, guardados dentro de nossos belos vasos
sanitários sem água e sentir a fragilidade e insanidade de nossa
civilização que sequer sabe lidar com as fezes a não ser, dando descarga
e se esquecendo delas. Pela falta d´água pude aprender os nomes de meus
vizinhos, que comigo partilharam a água que tinham.
Nestes
dias, no meio da lama fedida, buscando corpos, lavando corpos,
enterrando corpos de pessoas amadas, pude aprender sobre o amor. Amor
como cuidado; amor como honra ao que vive no outro, seja isto fato
presente ou memória. A crueza inesperada das situações que vivemos não
poderá ser expressa por palavras jamais, está muito além delas. O
sentimento do que vivemos está buscando seus caminhos de expressão.
Fiquemos
atentos! Agora é tempo de contar histórias sobre o amor que
descobrimos; amor cru, desnudo, amor enlameado. Contar muitas histórias
entre nós e para outros que aqui não estiveram. Apesar da eletricidade
ter voltado; apesar da água potável e encanada ter voltado; apesar de
todas as redes virtuais terem voltado. Apesar de todos estes
instrumentos mágicos da civilização estarem reestabelecidos, é
simplesmente hora de sentar e contarmo-nos histórias, as histórias do
amor que descobrimos; debaixo da lama, esta lama fecunda do que
poderemos nos tornar.
Nunca
mais voltarmos ao normal que era antes é o mínimo de honradez devida
aos nossos queridos que se foram. Nunca mais voltarmos ao que era antes é
o mínimo de responsabilidade frente a nós mesmos e a todas as crianças
que sobreviveram, sobreviveram para o novo.
Nestes
dias em que a lua volta a estar no mesmo lugar de um mês atrás, onde
estamos nós? O que temos aprendido? Será possível caminharmos sem
ingenuidades frente ao modelo de civilização que temos adotado: ele é
brilhante, ilusório, desumano, inodoro, definitivamente inodoro. Nosso
modelo de civilização não suporta o cheiro libertador de lama de
enchente.
Autor: Sebastião Luiz de Souza Guerra Enviado por: Dilma Faria Terra Fonte: http://www.institutofonte.org.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário